quinta-feira, 27 de março de 2008

Impressões de uma viagem amazônica


Por Michele Sato

A menos de 50 metros da casa de Chico Mendes, a delegacia de polícia fora abandonada, já que a justiça parece ser um artigo de luxo neste país chamado Brasil. Somente a coragem e o engenho de jovens rebeldes recriariam aquele lugar, transformando ruínas em potencial de sonhos. Clênio e Wagner San tiveram trabalho em convencer o grupo de jovens de que aquele local abandonado seria um palco ideal à arte de Xapuri, mas o trabalho maior viria depois, na hora da limpeza e na arrumação do local abandonado, que entre entulhos e vestígios de impunidade, ainda oferecia desajustes físicos em pedaços.

Tudo arrumado, afinal, Amarildo anunciava poeticamente o espetáculo da floresta no alto do telhado da delegacia, com os letreiros (não luminosos) atraindo o público: "arte na ruína". Sua voz ecoava facilitada pela ausência de tetos e telhados, e Cildo cuspia seu desprezo à injustiça em fogo malabarista num circo que mostrava o sol em plena noite. A recepção especial veio pela poética de Clenes, que me convidava à entrada de sua viagem de fantasias.

A primeira sala emanava fitas, panos e tecidos coloridos confundidos nos corpos camaleônicos de 3 dançarinos. Disfarçados de corpos humanos, Cley, Cleo e Gino eram as brisas que se movimentavam ao sabor de notas musicais, ultrapassando barreiras físicas e tornando as paredes apenas uma ilusão, pois suas danças flutuavam no orbe de encantos. E o corpo se prosseguia em outra sala, desta vez numa prisão de grades que escondia Rômulo, mas que barreira nenhuma o privava de sua liberdade. Desenhos, gravuras e quimeras brincavam com as esculturas do San, num contraste da dor e da alegria da performance.

Xapuri mostrava sua cara na voz de Alarice, como se Cazuza encarnasse a fome pela vida na mágica sinfonia destes jovens talentosos. João Paulo, Jarede e Rafael também embalavam o rock and roll dilacerante, como se a sonoridade inquieta pudesse libertar as almas vagantes ao mundo da paz. A tênue linha que segregava solidão e conflitos enroscava na pipa que voava pelos ares no show coletivo daquela arte sensível. E a representação teatral veio por Clemilsa e seu filho Diogo, Leleide, Getúlio, Aíton e pelo próprio Clenes. A poesia declamada deitava-se no chão, e ali as estrelas iluminavam aquele palco construído numa delegacia destroçada.

Queria ter chorado em silêncio, apreendendo cada momento como se fosse o último, na sensação vazia de que jamais presenciaria tamanho espetáculo. Mas naquele momento, compreendi que meu silêncio poderia ter interpretação contrária e balbuciei algumas frases, talvez sem nenhuma conexão sensata, mas as únicas possíveis naquele momento. A grandeza do instante veio em forma deste texto num quarto de hotel, quando a memória recusava a esquecer a coragem imaginativa de jovens arguciosos que me mostravam suas feridas, em uma das feridas arquitetônicas da história de Chico Mendes. Imanentes em suas dores romperam grades, quebraram janelas, voaram céus e transcenderam suas angústias. Se o sonho é algo possível, ele estava ali, excitadamente apresentado naquele instante que vencia cansaços, ruínas e tempos e se consagrava na alegria mais expressiva da raça humana: a arte!

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